Eu não sei
como isso aconteceu, parece que estava sentado naquela poltrona há mais ou
menos dez anos. Engraçado que não consigo me lembrar de quase nada depois da
última vez que abri a porta, a não ser do rosto dela. Mas também não tenho
certeza que ela tenha realmente entrado em casa.
*
Mais uma noite em que meu coração
batia lento, sem pressa, sentado na poltrona da sala esperando o tempo passar. Ou
parar, talvez. Afinal, não havia motivos para que a manhã chegasse.
Lá fora uma garoa fina caía.
Escutei algo bater na porta, mas
imaginei que fosse o vento. Ouvi novamente e então me levantei. Ao abrir a
porta me deparei com a figura de uma mulher, ela carregava duas malas e vestia
um sobretudo preto. Não perguntei quem era ela, deixei-a entrar. Ela tampouco
se preocupou em apresentar-se. Seu rosto tinha algo de familiar, mas não
conseguia me lembrar ao certo. Imaginei que fosse culpa da má iluminação de
minha casa.
Ela olhava tudo em volta com um ar de
superioridade, como quem já conhecesse aquele lugar e o julgava sem medo. Finalmente
resolvi perguntar quem era ela.
- Gostaria de um lugar para ficar,
apenas por uma noite. Não se preocupe, posso dormir no sofá se for preciso –
disse ela, ignorando minha pergunta.
- O seu rosto me parece familiar, mas
não consigo me lembrar de onde te conheço. Quem é você? – insisti.
Ela continuava a me ignorar e me
respondeu que a casa tinha a minha cara.
- Ouvi dizer que trabalha como
entregador no mercadinho da esquina, cansou-se dos livros? Muito me admira essa
sua guinada ao trabalho braçal.
Apenas me calei diante de sua fala. Como
seria possível que soubesse disso?
- Você tem uma mania horrível de
desconfiar de tudo e todos. Isso é realmente muito chato! Achei que com o
passar dos anos iria diminuir, mas, ao que me parece, só aumentou.
- Onde estão suas malas? – perguntei
atordoado com aquelas informações. Como seria possível ela dizer aquelas
coisas?
- Devidamente acomodadas embaixo da
cama – ela disse como quem já se sentia totalmente confortável.
*
Eu não sabia quem era ela, mas deixei
ela ficar. Ela conhecia todos os buracos e rachaduras das paredes. Ela tinha
acabado de entrar, mas a presença dela já fazia parte daquela casa há anos e,
só agora, eu conseguia enfim vê-la.
*
Sentada na poltrona, ela me perguntou
se não iria oferecer uma bebida, porque afinal, segundo ela, as noites são
longas e algumas até parecem anos. Fui até à cozinha e voltei com um copo de
whisky.
- Mas que porcaria de whisky! Isso me
lembra aqueles jantares horrorosos na casa da sua avó. Eu me lembro de você se
escondendo nos cantos para não ter que falar com ninguém. – disse a Mulher,
obviamente irritada por tê-la oferecido um dos meus piores whiskys.
Perguntei do que ela estava falando,
ela apenas me respondeu com um sorriso irônico.
A mulher levantou-se com seu copo e
andou em círculos pela sala, e então me disse:
- Francamente, esse lugar é
desprezível! Um amontoado de coisas velhas. O pior de tudo é o que você guarda
embaixo da cama e dentro dos armários. Terrível!
Fiquei sem jeito e um pouco irritado,
afinal foi ela quem entrou aqui sem mais nem menos.
- Mas eu nem te convidei para entrar.
– disse à ela.
- Você nunca convidou ninguém, nunca
fez nada sem sua mãe. Me espanta ver que conseguiu chegar até aqui, ainda que
esse “aqui” seja assim. Sua sorte é que depois da sua mãe, ainda teve Marta.
Por falar nisso, onde está ela?
Marta? Ela não podia estar falando
sério. Quem pensa que é, pra chegar em minha casa e despejar todas essas
coisas?! Não tive tempo de responder. Ela logo começou a falar:
- Não! Não fala! Deixa que eu
adivinho... foi embora? Te deixou? Sumiu? Sabia! Com certeza cansou-se de ser
sua babá. Deve ser terrível viver com um homem como você. Olho para sua cara e
fico imaginando como vocês transavam. Você não devia gostar, não é? Seria como
transar com sua mãe. Patético!
*
A verdade é que um dia eu acordei e
Marta, minha mulher, não estava mais aqui. A mesa do café da manhã estava
posta, a xícara ainda estava quente quando cheguei à cozinha. As roupas dela
ainda estavam no armário, então imaginei que voltaria mais cedo ou mais tarde. Ela
vai voltar. Eu acho.
*
Estava cada vez mais irritado com
aquela mulher.
- Não lhe devo explicação alguma. –
eu disse.
- Como não? Você me deve muito. É inaceitável
que seja assim tão imbecil. Marta não irá voltar. Sua mãe muito menos.
- Como sabe disso?
- É óbvio! Você sabe disso também.
Aliás, você teve certeza disso na hora em que Marta, sem hesitar, girou a
maçaneta da porta. Ela não precisou lhe dizer nada, havia um silêncio
retumbante.
Ela havia ultrapassado todos os
limites. Não era nada daquilo. Não era bem assim. Ela não sabia de nada. Ela não
podia saber de mim.
- Pode tentar dizer o que quiser.
Mas, de fato, o que te aflige é que não pode suportar suas próprias fragilidades,
prefere fugir. Deixou morrer sua mãe em uma cama de hospital, sozinha. Incrível
como ainda consegue dormir com isso.
Fiquei aflito, comecei a tremer e
suar frio. Perguntei-a de quem estava falando. Ela me olhou calmamente e pediu
que pegasse uma bebida para mim e enchesse seu copo.
*
Somente um idiota pode esconder sua
própria sombra; inveja, humilhação, repressão, e toda sorte de sentimentos que
não estamos dispostos a sentir. Não é simplesmente por estarem no escuro que
desapareceram, ainda continuamos a senti-los no buraco da alma, eles passam por
lá, indo e vindo, mas todas as vezes que passam, grudam nas paredes, são na
verdade o próprio buraco.
*
Eu não sei ao certo porquê, mas
comecei a me explicar.
- Não foi minha intenção, eu não
sabia o que fazer. Aquele lugar fedia. Você já sentiu o cheiro da morte?
- É igual ao seu e o meu.
- Não.
- A gente apodrece um pouco mais a
cada dia. Até que chega o dia em que nossas entranhas estão todas corroídas e
não se pode mais sustentar a vida. Me fala a verdade, você não suporta estar
perto de nenhum ser humano, até mesmo dos que cheiram mais vida do que morte.
De onde ela tirou aquilo? Não fazia o
menor sentido. Até que ela me disse que era algo muito fácil de perceber, pois
não havia ninguém lá, além de mim.
*
Eu não suportava Marta, não suportava
minha mãe, minha avó. Elas riam, riam demais! Viviam como se nunca fossem
morrer.
Eu não quero lembrar disso.
*
Eu sabia porque ela estava lá. Pessoas
que aparecem na sua casa depois do sol se pôr, são como ratos e baratas.
- Você é despresível! Nem sei porque
te deixei ficar tanto tempo – eu disse.
- Você sabe sim.
Eu não queria mais falar daquilo, não
queria falar de nada sobre mim. Perguntei-a porque não falava sobre ela.
- Não há nada que eu possa dizer que
você já não saiba. – disse ela.
- Você é completamente maluca.
- Existem só dois tipos de coisas na
vida: aquelas que acreditamos existir e aquelas que ignoramos. As ignoradas,
geralmente, são as que nos trazem mais sofrimento.
- Não vai falar nada sobre você? –
insisti.
- Eu já disse.
Fiquei nervoso e gritei:
- Por que meu copo está vazio? Traga o
maldito whisky!
Ela me respondeu que eu havia bebido
a garrafa inteira.
- Por que você não pega as suas
coisas e vai embora? Já está quase amanhecendo. – disse já sem a menor
paciência.
- Que coisas? – ela respondeu.
*
Ela estava aqui, não só naquela
noite, mas em todas as outras. Bebendo meu whisky ruim e arranhando minhas
paredes. Mas quando amanhece, ela dorme e depois se arrasta pelo dia com sua
ressaca, esperando o próximo copo de whisky.